Poemas e contos contribuem para a recuperação de nosso ser, viajando pelos nossos mitos e arquétipos, pelas lendas, pelas aventuras de nossa essência através das dunas do tempo.
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sábado, 24 de agosto de 2019
E agora Olavo?
Olavo cansou dos malabarismos no semáforo. Múltiplo artista do faz de tudo. Jogou laranjas para cima debaixo do vermelho. Vermelho? Seu sonho socialista se desfez. Os homens querem mais natureza. Mais liberdade. Não desejam uma ideia pronta. Artificial nunca! Adaptou uma dose de liberdade no glamour capitalista. O comunismo desfaz da natureza humana. Por outro lado o capitalismo não controla suas regras! Andou de monociclo. Umas voltas em semicírculos diante dos faróis e a recolhida das moedas atiradas por muito poucos corajosos. Quem hoje em dia vai abaixar os vidros de seu carro para um desconhecido no sinal? Quem se arrisca a uma facho de calor invadindo-lhe a privacidade do ar condicionado? Sua última experiência foi como palhaço. Narigão, calça frouxa e suspensório. Uma pintura ridícula no rosto. Um chapéu tosco na cabeça. Alguns tombos fáceis de serem exibidos à luz. Seus ensaios, conseguira-os ao longo do ofício com outras atividades de entretenimento. Asfalto escorregadio, água vinda do lava-jato misturado com sabão e óleo. Lixos de papéis, plásticos, restos de alimento que a população dejeta sem consciência. O passo mágico do palhaço fora erguido e derrubado na luta do dia a dia. Mas não entrava dinheiro que alcançasse a segunda refeição diária. Muito esforço por nenhum retorno. Viver quase que exclusivamente à mercê da bondade infantil insistente com seus pais: Abre o vidro papai! Deixe eu cumprimentar o palhaço!Muito pouco por tantos tropeções na avenida principal. Olavo pensou em buscar a Deus. Foi num domingo à noite. A igreja repleta e o padre rezando sua santa missa cheia de mistérios e devoções. Com muito custo Olavo conseguiu um lugarzinho num longo banco. Vestindo seus trapos, com os cabelos despenteados, enquanto o sermão avançava por um deserto infinito, ele identificava-se com aquele líder de um povo fugitivo, sob as benesses de Deus e comendo o maná sagrado. Adormeceu profundamente caído sob o banco. A igreja com as portas fechadas não lhe dava medo algum. Sentia uma paz nunca percebida. Com certeza as pessoas se retiraram em paz. Numa hora destas é muito comum alguém ficar horas meditando. Chegou o momento em que ele caiu sob o banco. Uma senhora octogenária responsável pela porta principal, fechou-a em conjunto com o peso de sua idade. Olavo agora estava só. Não! Sentiu-se em casa e começou a vasculhar o interior do templo. Pelos vitrais coloridos anunciando a criação do mundo, ele viu uma nova oportunidade se erguer diante de sua solidão. Olhou minuciosamente cada santo. Captou tantos que cobriam a quaisquer milagres pendentes. Um nicho vazio entre duas santas com olhar azuis e piedosos, chamou-lhe a atenção. A madrugada avançava pouco a pouco. Pela sacristia descobriu uma porta por onde se alcançava o pomar. Mangas, abacates, laranjas foram sua refeição daquele dia acertada no alvorecer. Segunda feira amanhece com todas as suas inquietações. A cidade burburinha lá fora. Para ele isto pouco interessa. Ganha a escada ao fundo do templo onde alcança a torre do sino. Dali avista a metrópole. Um mundo totalmente à parte do outro. Escuta o barulho da mesma senhora abrindo a porta principal. Ela se dirige à sacristia, reza e vai embora. Ainda há gente boa neste mundo, pensa cabisbaixo. Com o tempo consegue se esquivar entre as colunas e bancos. Passa a morar ali, sem que ninguém o note. Agora come melhor. O pomar divisa com a cozinha do padre. Uma outra senhora vem com a comida todos os dias no almoço e na janta. Deixa-a sobre a mesa em tigelas de ágata. O padre come bem. Porém, há tanto alimento que dava para cobrir a fome de um bispo. Olavo come o suficiente e ainda sobra. Uma torneira esquecida num canto do pomar serve-lhe de banho. Um mictório masculino, com um vaso atende-lhe perfeitamente às suas necessidades pessoais. Quando vivia na rua, costumava usar um banheiro turco de um posto de gasolina. Fez isto durante anos. Agora estava no céu. No céu mesmo, rodeado de orações. De pessoas arrependidas, rezadeiras. De santos! Foi aí o lance. Aquele nicho vazio! Sim, ele durante anos exercera uma atividade na praça muito conhecida de todos. Foram vários os papéis. Múmia, general, cacique indígena, guerreiro samurai. Agora o de santo! Como todo o início, mesmo para os mais experientes, é difícil e deve ser feito passo a passo, transvestiu-se no meio da semana. Uma senhora piedosa aproximou-se. “Oh! Meu Santo Peregrino! Atenda meus pedidos! São dores por toda a parte, meu protetor. Da cabeça ao calcanhar!” Olavo apenas olhava calmamente. Fixava profundamente o semblante da velhinha com uma expressão de pesar. O boato do Santo Peregrino rolou quarteirões. “Ele parece estar vivo! É um santo de verdade, vocês tem que ver!” Olavo começou a gostar daquilo tudo. Principalmente pelas moedas que se multiplicavam no pires embaixo da coluna. Mas o negócio cresceu demais. Começou a vir gente o dia inteiro e alguns permaneciam até altas horas da noite. Arranjaram outra pessoa mais jovem para fechar a igreja. Estava ficando arriscado para ele. Comentava-se que o Santo sumia e aparecia em determinadas horas. Com certeza. Olavo necessitava comer, beber água, ir ao banheiro entre outras coisas mais. Foi baseando neste alvoroço da fé, que o padre resolveu marcar a missa do Santo Peregrino. Precisava arrecadar dinheiro para terminar suas obras e o momento não poderia ser outro. Olavo adorou a ideia. A frustação do artista agora seria transcendida. Alojou-se no seu nicho e deixou a missa rolar. O dinheiro jorrava quem nem água de cachoeira. Encheram um saco de notas de cem, agora vejam! As beatas felizes com o evento haviam preparado pratos deliciosos para o padre. Olavo encheu a pança! Comeu de arder os olhos e inchar as bochechas. Não deu outra coisa. A missa estava longe de terminar, quando a barriga começou a fazer uma reviravolta incontrolável. Olavo tentou segurar o que pode. Começou uma vertigem subir do ventre à face. Os ouvidos pareciam que iam explodir. Os olhos davam a impressão que iam saltar do rosto. Não dava para segurar mais um minuto. Gritou com todos os pulmões: “Esperem que eu volto!” Minha gente, vocês não imaginam no que deu. A correria foi desenfreada. Uma freira saiu cavalgando no dorso de um frade franciscano. Isto foi o de menos. Idosos que mal conseguiam andar, corriam como meninos no parque. O padre ganhou ruas como uma tocha de fogo de um cometa ambulante. No momento em que Olavo gritou, ele balançava o incensário. Ao correr com aquilo na mão, tocou fogo em sua batina . Fica por conta de vocês imaginarem a cena. Mesmo todo borrado, Olavo não perdeu tempo. Passou a mão no saco de cem e sumiu. Sentia-se justiçado. Foi o único papel que lhe deu uma renda magnífica e um público encantador. Conseguira comprar uma casinha na periferia. Como dono de um boteco, vende suas pingas com salgado e guarda os seus segredos.
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