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domingo, 20 de janeiro de 2019

O balanço das lembranças


Marcos era o filho mais velho, aquele retirante pelo mundo e levara parte de sua herança para esbanjar e gastar por todas as boates da vida, com as possíveis mulheres, com roupas, passeios, aventuras, enfim, escolhera seu destino. Pedro era o irmão mais novo, aquele caseiro sempre ao lado do velho pai, prestativo, obediente, solícito, quem ficara para cuidar totalmente do velho e atender-lhe em todas as suas necessidades múltiplas, paraplégico, apenas a mente funcionando, porém, sem capacidade de quaisquer movimentos.
O idoso Carlos vivia assim com seu filho naquele casarão sombrio lá no ponto crucial daquela extensa ladeira ladeada de flamboyants, não tinham serviçais na casa, todos os trabalhos eram feitos por Pedro, tudo bem, apesar de uma pequena necessidade especial na fala e no raciocínio, mas muito eficiente, conforme alguns relatavam ter sido o mais parecido com a mãe.
Seu Carlos passava a maior parte do tempo balançando em sua cadeira no salão vazio. O balanço era efetuado por um pequeno motor ligado a uma engrenagem redutora, de forma a ser contínuo e de bom grado do velho durante as vinte e quatro horas do dia; assim ele acordava ou dormia quando quisesse diante de uma parede forrada com um imenso espelho, reproduzindo uma série de fotos presas à parede detrás com retratos diversos de vários momentos de sua vida ou de fatos passados naquela casa.
Em cada balanço da cadeira, ele se concentrava em um retrato, imaginariamente pensando reviver o acontecimento a ele ligado. Ora vê sua mulher cantando parabéns ao seu lado e de dois filhos. Sem dúvida, a família vivia muito isolada e desde quando imigraram da Ucrânia por perseguição étnica, decidiram a viver assim, pois pelo menos viver já representava um grande lucro.
Assim aquela cadeira de balanço enchia a sala vazia de cenas e recordações, embora algumas lágrimas descessem de seus olhos, também alguns ensaios de sorrisos ou resmungos, assim como a saudade das celebrações da Páscoa com os pães ázimos, aqueles tão tradicionais pães assados e sem fermentos, um vinho dos melhores, frutas, peixes, Debussy ao piano na eletrola, mas antes de tudo a leitura bíblica repetida em anos. Em anos? Em séculos, milênios...
Marcos e Pedro ainda pequenos, bem vestidinhos em volta da mesa, enquanto reflete demoradamente, “onde e como está Marcos?”, pois um pai envelhece, mas não se esquece do filho.
Coitado! Nem sabe da situação de Marcos agora. Este após gastar todo o dinheiro levado, vivia como um mendigo no centro da cidade. Sua cama era um papelão e comia conforme os restos dos restaurantes eram lançados às lixeiras, enquanto vagueava pelos parques e logradouros públicos. Em sua mente sempre se recordava do seu pai, mas a vergonha não lhe permitia retornar. Jamais! Sabia de seu estado de miséria tão profundo e preferia morrer por ali mesmo a voltar para a casa do pai.
Um dia, no ir e vir da cadeira de balanço na sala, os retratos iam e vinham, iam e vinham, como se fossem vontades de voltar e chamados para regressar, porém, tudo não passava de um vai e vem de um velho gangorrando em uma sala vazia, após escutar um grande barulho na cozinha, pois Pedro escorregara e batera com a cabeça em uma mesa e já somavam horas o seu estado inconsciente, deixando o velho totalmente sozinho e necessitando de vários atendimentos, entre eles seus habituais remédios, a troca de suas fraldas, um copo de água pelo menos!
A cadeira ia e vinha, vinha e ia e fazia um barulhinho repetido pelo desgaste dos dentes da cremalheira, como se fossem “vem filho, vem filho, vem filho!”; não aparecendo filho algum. Porém, a porta daquele casarão, pela mente do Pedro nunca ficava fechada, mas mesmo encostada quem os visitaria se durante toda a vida se tornaram uma família nuclear isolada em seu próprio mundo?
A cadeira ia e vinha, vinha e ia, quando um vulto sujo, imundo, faminto, aos farrapos atravessou a sala, abraçou e beijou seu pai! Correu para atender seu irmão, carregou-o nos braços até uma antiga poltrona no canto da sala, abriu as cortinas e as janelas para a luz e o ar fresco entrar naquele ambiente, onde aos poucos graças a sua ajuda ele foi voltando a si, caso contrário teria morrido desmaiado na cozinha.
O velho na cadeira ia e vinha, vinha e ia com um sorriso iluminando toda a sala, sorriso de festa nunca dado a Pedro, mas bem entendido, pois a volta do filho à casa do pai lhe salvara também naquele casarão sombrio no fim da rua, com uma porta somente encostada, pronto para receber um filho distante, uma porta tal qual a porta do Céu!

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