pesquisar este blog www.francomacom.blogspot.com

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Canção aos desaparecidos

Foram-se naquela tarde, naquela tarde, naquela tarde...
Levem minha canção oh! desaparecidos, desaparecidos, desaparecidos! Desapareceram na tarde e enterrados para sempre no meu coração, no meu coração, no meu coração!
Se de manhã deram bom dia, com as mãos arrasadoras da lama lhe tamparam o sorriso da boca do boa tarde! Cada sorriso calado!
Apenas uma janela no resto do alpendre balança ao
vento, balança ao vento, balança ao vento...baila nesta
gangorra o anjo da morte sobre o vazio do povoado!
Não há mais ruas, não há mais vida, não há mais varandas!
Não há mais ir e vir, ir e vir, ir e vir, pois tudo foi indo,
foi indo, foi indo, enquanto a lama ia vindo, ia vindo,
ia vindo...Agora, uma única janela em único alpendre
balança duas bandas, duas bandas, duas bandas...
Seriam mãos de despedidas, seriam mãos de até nunca
mais, seriam mãos de adeus?
Levem minha canção oh! desaparecidos, desaparecidos, desaparecidos! Desapareceram na tarde e enterrados para sempre no meu coração, no meu coração, no meu coração!
Oh! Meu Deus, de onde estais me responde para onde
foram tantas vidas?
Senhor, me dê uma resposta à minha dor, me dê um alento!
Aquela tarde levou tudo embora, tudo embora, tudo embora...
Tudo pintado à tinta de barro de uma única cor! Com aquela
tarde, todas as tardes dali foram-se embora, foram-se embora,
foram-se embora,com todas as tardes por dentro enterradas na lama
sem nenhuma tarde por fora! Momentos que jamais serão esquecidos!
Levem minha canção oh! desaparecidos, desaparecidos, desaparecidos! Desapareceram na tarde e enterrados para sempre no meu coração, no meu coração, no meu coração!

sábado, 26 de janeiro de 2019

Oh! Deus! Brumadinho!

Resultado de imagem para destruição em brumadinho
As bocas da morte agora escancaradas
são betoneiras apocalípticas, impiedosas, 
das barragens volumosas mal cuidadas,
são outras hiroshimas de chagas em rosas
com rejeitos de escombro, desova, nossa
herança inaugurando o saque e o escambo,
o desenlace, o dócil ambiente se desfigurando
em um desfiladeiro de toxina; tafetá sob o
sabre devastador da natureza fria, desnuda,
devastada, troféu de venenoso maná, descaso,
com sua lâmina de frio magma putrefata, muda,
empunhada pelo fantoche do poder inconsciente,
ditame, fecho do fetiche, do assombro, fraturas,
do espanto turmalino ante o novelinho fadado
de leitos consonantais com estradas de rasuras,
como frases sem sentidos, sendo-lhes roubado,
as vogais, as sinapses de união ao viver, flertar,
ao belo, ao florescer, ao ser; agora são paisagens,
lençol de lama, não é cama a dormir e cochilar;
galácticas, levianas, alheias ao léxico, pois estão
ao leú, afastadas do reino onde pulula a vida;
sendo cada surpresa um talismã em suspense,
um brinde aos cavaleiros do apocalipse, aos
que troçam do mundo pelo lucro ante o lapso,
recurso usado ante a mídia para assim cavernar
com insana justificativa o assombro do fiasco.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Ame a vida

Resultado de imagem para silhuetas de casas romanticos se beijando e amando
A mim me basta o verbo gostar!
De viver é bom gostar, embora nada
queira, nada sou, nada possuo!
Saber disto é sorver, degustar esta
existência. Os que não sabem disto
querem degustar, sem nenhuma
consciência. Isto é desgastar.
Talvez nunca saberão do movimento
incessante deste mundo e quando
chegar ao final, com a alma cansada,
ver-se-ão diante do fim da estrada!
Porém quem se dilui no nada, alcança
a percepção do todo e não conhece
o fim. Quem sabe gostar, sabe ir sem
pressa, sabe ir devagar. Também sabe
que este ir e vir é permanente.
As coisas sempre foram assim.
Ninguém as percebe, porque ninguém
consegue viver no presente.
Ora presos ao passado, ora ao futuro,
embora toda a claridade, tropeçam
de verdade em um viver obscuro.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Poema do desencantamento

No início uma gélida solidão
com um arsenal lacrimoso
estendia suas alças zodiacais
desde o humo do chão até ao
último astro luminoso; um zíper
de aço inoxidável não permitia
nenhuma abertura e nenhum abrigo,
nem a proeza de um minúsculo clipe,
por onde pudesse passar ou morar
a pelúcia da mais oculta esperança,
pois a tristeza traçara um visco entre
o azedume da terra e o inóspito mar.
Quando se lançava a âncora
naquele porto, sua ponta chegava
ao foco do lodo e não havia como
regressar, enquanto a embarcação
se destilava com ferrugem e coque,
após o embarcadiço se destroçar.
Em tudo havia solidão, solidão por
toda parte. Em tudo havia sentença
sem a presença da contraparte. Mas
ele chegou sorrindo, sorrindo com
amor e arte. Sorriso como um balanço
movimentando por todos os lados.
Sorriso como um gancho pra convidar
a alegria e bendizer o sol, romancear
a noite, incendiar o dia, entregar o coração
Insulano, palpitando agora recém ilhado ,
por decreto do destino como única opção,
onde só havia na ilha uma torre
com uma donzela presa, fiando
por eternidades com sons ocarinos
de suas agulhas fiadeiras, até que
aqueles sorrisos cristalinos lhe chegaram
de surpresa, conforme predisse cantando
a pitonisa sobre a maldição de uma megera!
Então, adeus tardes carpideiras, pois
somente o amor é capaz de ter o encanto
do desencanto de desencatar as feiticeiras!

Autogeografia

Eu comigo sou ilha,
sou terra de onde vim,
rodeado por "mim".
Mas de mim não desvencilha
seu cheirinho de carmim.
Eu contigo sou tudo,
sou eterno, sou lúdico.
se te abraço
vou mais fundo
e no laço deste amasso,
eu abraço o mundo!
Eu sem "ti" fico triste,
fico mudo, fico "sem".
Mas contigo, sou bem-te-vi
como na saudade te viste
e ao querer te ver tão bem,
contigo eu fico zen!

Oração

Oh! Eterno, quantos sabem mais que todos
e dizem vencer a todos e a tudo,
enquanto eu mal venço a mim mesmo!
Ainda bem que minhas ninfas não devoraram
Teus pomos de ouro e não profanaram
o meu Jardim das Hespérides!
Quantos sabem de tudo e espelham seus
selfs a sobremodo, enquanto eu me sinto
esta sombra sem rosto que só tem vulto
e não tem flashs!
Mas o Jarro de Pandora que tu me destes
só estava cheio de perdão e esperança!
Assim meu rosto sem rosto, minha face
sem face, por onde viveu ou onde andasse
deixou seu sorriso de criança que a muitos
serviu como vinho mosto com maná de Salem!
Quantos possuem nos lábios uma
resposta pronta, enquanto eu vou para o Teu
manjar e Tu te escondes por trás
das cortinas do Grande Salão!
Mas vou simplesmente como quem só quer
sorver a ensinança e não comungo a idéia enfadonha
de fazer um ídolo conforme a intenção que
muitos tem ao visitar o Anfitrião!
Mesmo assim, ainda saio com uma
pergunta muito antiga, que de tão velha
em mim, já anda tonta!
Quem sou eu afinal de contas?
Continuarei amarrado ao mastro como Ulisses
perante as sereias ou serei capaz de atravessar
a noite do umbral sem me perder de mim mesmo?
Oh! Santa pobreza de nada saber! Santa nudez de
nada apresentar!
Oh! Santa acuidade de diante do vazio saber-se
respeitar!
Nada sou, nada tenho, nada almejo! Sou uma chispa humana!
Sou apenas um simples nada diante do grande início,
da expansão infinita do Logos, da Mente presente do
Cosmos, sem cair na insignificância mundana de cada precipício!

Volúpia

Minha alma é como uma colcha de retalhos
feita às cópulas em tardes interioranas,
cobrindo meus sonhos movidos
com os sussurros das venezianas;
modulando os ventos esparzidos
em polens de imagens e pensamentos.
Todos tem uma resposta pronta
e se julgam despertos o bastante!
Apenas eu abro as janelas das noites
escuras dos meus dias claros
para buscar nos meandros dos
meus momentos mais sonâmbulos,
as respostas de que afinal de contas
não há quem as responda, como
por exemplo, porque a noite é tão
grande e o dia é tão pequeno,
sendo que as horas são as mesmas
mas não são iguais em seus
passos noturnos a pisar estrelas distantes.
Oh! Santa pergunta, santa vanidade
em que nada tenho, nada sou,
nada desejo e por aí penumbra meu
desalento, ver-me diante da eternidade!
Por aí me esvazio, como em sua
correnteza por menor seja um rio,
sempre leva em seu dorso, o rosto
imerso da paisagem do céu, com
suas nuvens ambulantes esvaindo
com sua leveza um azul molhado
de águas frias, como um beijo bem
posto na madrugada varrendo os
corpos nus e as colchas emboladas
sobre o leito e ao pensar assim
me esvazio, pois tudo tem seu
sentido na grande mente do logos,
nas indagações mais estanhas sobre
a idéia do princípio, nem que seja
como estas lembranças recortadas
e repartidas caindo como para quedas,
ou que seja caindo da cama, mas
caindo aos retalhos em um precipício!

Moldura poética

De quando em vez, penduro
meus poemas no varal do face
e os deixo a quarar, pois sei que
todos vocês deles cuidam, como
uma mãe sabe embalar e pentear
seu filhinho e sabe dar-lhe um beijo
matinal quando ele acorda sorrindo!
Eles perdurarão em catedrais de
tempos futuros e cada estrofe colhida
do santuário do meu coração será
como pianos centenários nos alpendres
internos destas permanentes catedrais,
pois sou como aqueles homens que
colhem fardos de trigos pelos campos
dourados de espigas, com seus corpos
deglutidos pelo suor e sacrifício, mas
com suas almas explodindo de alegria
como fogos de artifício ao lembrar
de suas amadas em suas noites nupciais!
Às vezes, com a alma de âmbar em
violáceas passadas, caminho por vindimas
e balsamo meus poemas em adegas profundas,
penetrando-os por corredores perfilados
de labirintos subterrâneos, para dar de
beber à noite do umbral e que ela
me ofereça seus seios para sorver
a seiva da loucura paixão, enquanto
eu lhe ofereço e lhe ergo minha taça
de cristal cheia de poemas a beber,
com seu corpo perfumado de sombras!

Cupido the flash

Foi algo tão de repente,
quase não dá para explicar.
O sol descendo no poente
ficou de mãos dadas ao luar
em seu momento de aurora.
Mas tudo isto foi um beijo,
suspenso no ar e travesso!
Suspiro de prazer atravessado,
tremor por todo o corpo afora;
eterno momento sem fim e começo.
Estalido de som sendo dado,
ficou para sempre guardado
na alma virada ao avesso.
João ficou tão vibrado
que Maria mudou de endereço!

Poeminha do espanto

Quando ele viu sua amada
luzindo um beijo no escuro,
brilho da chama enlaçada?
Caiu de cima do muro!
Rapaz, tenha muito cuidado
ao procurar um lugar seguro.
Se você não se sente amado,
não fique em cima do muro!

Poema do adeus

Estava tão deslocado
ao tomar o seu café
na padaria ao lado;
após bem mastigado,
engoliu o guardanapo!
Tanta coisa nele escrita!
Agora onde está o pavio
de sua fértil inspiração?
As curvas da mulher bonita!
Um poema como um rio
levava suspensa a canoa
no remo da imaginação!
Reescrevê-lo? Nunca mais!
Destroçou-se seu tesouro!
Era um caso passageiro.
Antes de chegar ao cais,
sem beijos no ancoradouro,
foi-se como o amor primeiro

Vida e saudade


A vida não fica. A saudade também não!
Ela é a última que apaga as luzes e fecha a porta do coração!
A vida é breve, são tão rápidos os anos,
as asas dos dias sobrevoam sobre nós,
como uma águia veloz deixando para trás
o sabor de cada momento sob o pálido,
esmaecido olhar espantado, guardado no
bolso como relógio de algibeira do senhor
dos tempos que amanhece e anoitece no
mesmo vulto. Quase se pode dizer o mesmo
da saudade! Ela chega tão depressa que as
janelas da casa ficam de boca aberta!
Ela pulula por todos os cantos e vai desfiando
com saltos instantâneos em sulcos de algodão
ou de tenra argila ante o sabor de ondas vorazes,
enquanto manobra o leme de sua direção.
Saudade, estranha gitana, embora presente,
vive permanente em um orfanato ausente de
pai e mãe, órfão de tudo que carrega em seus
braços e que se desfaz e nada recupera, pois
roda seu filme na tela sempre vazia de nossa
imaginação, nos enchendo de surpresas e emoção!
O curso da vida é breve e ninguém o segura em suas mãos!
O discurso da saudade é nudez e solidão!

Canto às minhas musas

Ó princesas que encontraram seus amados poetas, não se esqueçam de que os poetas são mais vulneráveis à saudade que os homens comuns.
 Os poetas são imortais, pois seus poemas permanecem em livros e manuais e se perpetuam nas memórias dos homens comuns, portanto suas lembranças se adentram pelas dobras das cortinas dos tempos. 
Para eles tudo é diferente, mesmo que fossem todos os dias iguais para os homens do dia a dia, para eles cada manhã alumbra e repete por trás de suas brumas de Avalon, uma lenda, uma estória fantástica, pois por trás de todo este mundo, adentrando-se em seus véus, há mais coisas e mais céus que não poderia imaginar nenhuma mente humana.
Ó princesas que encontraram seus amados poetas, cuidem de se cuidar ao tê-los, pois para eles dois olhos podem ser duas noites repletas de estrelas e um sorriso pode ser um manancial de primaveras bordando o jardim do édem de uma face.
Os poetas tropeçam pelos caminhos em suas pedras e depois as beijam e abraçam, porque eles não pagam com as mesmas moedas as injúrias que recebem e fazem destas pedras as moradas do amor e do perdão e fazem deste caminho estradas suntuosas e perfumadas, por onde qualquer santo haveria de escrever seu testamento em seu dorso como em um pergaminho.
Ó princesas os poetas são diferentes e tenham paciência com eles, porque muitas vezes suas inversões são grandes verdades e suas indagações são grandes possibilidades, pois se eles transformam poentes em nascentes é porque seu pensar vai além do horizonte, é porque sua sala de estar prepara uma festa por trás da linha onde este mesmo horizonte beija o mar.
Hoje me propus a defender todos os poetas e saí pelas ruas com meu chapéu preto na cabeça como o fazia Fernando Pessoa com todos os seus heterônimos a caminho de uma suntuosa festa imaginária, para que não aconteça com eles o que aconteceu entre Fernando e sua princesa; enquanto assim vou caminhando vos convido a sentar-me comigo nesta mesa, cobrir-lhe de flores da véspera, encher-lhe as taças de cristais com vinho do Porto para fazer um brinde Ó princesas a todos os poetas!
Ó princesa o outro brinde é para vós! O que seria dos poetas se não fossem suas musas, Ó princesas!

A Inconfidência das Cores

Enoque acordou naquela manhã de quarta- feira de cinzas, muito precipitado, pois apesar da meia escuridão do quarto, percebeu ser muito tarde. Estranhou o quarto mais escuro como antes e lá fora o dia não demonstrava claridade. O relógio marcava dez horas da manhã. O seu mostrador ficou cinza e os ponteiros bem mais escuros em comparação com a tonalidade anterior.
Para sua surpresa o quarto não refletia azul. O guarda-roupa de jacarandá também perdera sua coloração inicial. Todas as suas roupas comportavam-se em única cor. A cortina da janela, anteriormente lilás, agora balançava com a cor do céu. Mas este não poderia ser mais chamado de azul. O piso do quarto, em granito ornamentado mudara sua cor para a mesma da cadeira e da mesinha no canto. O vento soprava cinza.
A sua pele também mudara e ao abrir a gaveta da mesinha para apanhar seus óculos, percebeu estar da mesma cor deles e da mesinha. Aquele rapaz louro tão amado de Monique fora substituído por outro.
Monique, onde está Monique? Tateia pela meia escuridão para encontrar seu retrato. Não é mais Monique! É Moniquelisa numa única coloração!
Ao lembrar-se dela, não consegue encontrar o perfume de um amor colorido. É da mesma tonalidade do guarda-roupa.
Com dificuldade consegue dirigir-se ao banheiro. O corredor está numa penumbra. O banheiro mergulhado numa bruma. A torneira não é mais de metal, nem o vaso, nem a válvula do mesmo. 
A pia do banheiro se confunde com a cor da água da torneira aberta. Tenta olhar seu rosto no espelho, mas não é possível, pois este perdeu completamente o brilho.
A pasta de dente só pode ser identificada por ser da forma de um pequeno tubo. A pasta, o tubo, a escova e os dentes estão praticamente todos da mesma cor!
O mais duro de tudo era encarar a água com aquela aparência. A água é um símbolo poderoso da vida e esta não poderia transformar-se nisto. Naquele exato momento onde ouviu o choro de uma criança, não exalava com o som a mesma cor de antes.
O choro refletia a cor da água! Então resolveu olhar através da janela do banheiro. Do outro lado, um prédio anteriormente pintado de branco, não se apresentava mais assim.
Tanto olhar para trás onde se encontrava aquele prédio além da janela, quanto olhar para frente, onde se localizava o antigo espelho, pouca diferença restava.
Sua visão à medida da observação mais apurada foi se adaptando ao ambiente totalmente reformado.
Com dificuldade atravessou a sala uniformizada e sua maior preocupação foi dirigir-se à estante. Com muita dificuldade localizou-a. Ansiosamente apanhou um livro qualquer. Abriu-o. Para sua felicidade, as letras eram mais escuras em comparação ao papel. 
Mas as ilustrações das páginas bailavam da mesma cor das letras. Há mais de uma hora acordado, possibilitou-lhe habituar e ficar um pouco à vontade naquela nova situação.
Com bastante sacrifício conseguiu fazer o café. Comparado à água e ao açúcar, brilhava um pouco mais escuro. O pão continuava integral, mas dentro da geladeira tudo se resumira praticamente na mesma cor. Inclusive a geladeira perdera sua cor.
Voltou à sala. As cortinas da janela estavam agora da mesma cor das cortinas do quarto. Lá fora no estacionamento todos os carros só poderiam ser distinguidos pelo design ou outros dados de suas formas.
Alguns vultos andavam pelas calçadas. Todos da mesmíssima cor num mundo planificado.
Levantou os olhos para procurar o sol. Não era mais aquela estrela radiante do dia anterior.
Transformara-se num disco prata, mas de uma cor muitíssimo forte e radiante, porém com raios de prata.
Agora seus olhos estavam mais bem habituados ao novo ambiente. O mundo estava todo em preto e branco.
Foi uma opção da própria humanidade. Rejeitou a suntuosidade da natureza. Devastou, poluiu e transformou em cimento tudo ao seu redor.
Num único relance predominava o cinza. As cores, inteligentemente, esperaram a quarta-feira de cinzas e apanhando todos de surpresa, fugiram deste mundo. Tomem cinzas! Gritaram todas em uníssono!

Ora, seu Otávio

Otávio sim, Otário não! Para ele não foi fácil desde criança suportar as críticas, estas naquele tempo nem tinham um nome cinematográfico de bullying e quase sempre terminavam em uma briga danada na escola. Otávio Pinto das Graças e quantas marias das graças existiam naquela época! Coitadas, quantas sofreram e vexames não faltaram vindos de todas as partes.
Mas deixemos de lado a sua vida de criança, afinal já se foram mais de cinco décadas e agora o vemos sentado frente a frente com o temível urologista, devido a uma infecção urinária tão intensa, quase o levando ao desespero, porém, em conta a ação dos atuais antibióticos ficara apenas como uma amarga lembrança.
“O senhor vai precisar fazer também um espermograma! Curado da infecção está! Mas me contou sobre uma caxumba aos trinta anos de idade!”
“Sim doutor, foi uma experiência terrível! O senhor não sabe o que eu passei! Foi mais de um mês de jejum absoluto!”
“Seu Otávio o senhor disse sobre os testículos...” “Sim doutor, tenho testemunhas ainda vivas do que passei!”
“Não, Seu Otávio, pergunto se desceu para os testículos, lembra que....” “Doutor, tenho testemunhas por todo lado, tanto à direita, como esquerda ou na descida da ladeira!”
“Seu Otávio, testículos!” “Doutor para que tantas testemunhas?” “Seu Otávio, vou no popular, pergunto se realmente ela desceu pro saco?”
“Sim, Doutor, ela desceu pro saco todo!”
“Pois bem Seu Otávio, vou encaminhá-lo para fazer um exame de espermograma! Aqui está a requisição, vou pedir à Secretária para marcar uma ida do senhor até lá!”
Minutos depois a secretária volta com a requisição preenchida para três dias depois.
Seu Otávio muito preocupado segura tremulamente aquele papel e aguarda ansiosamente o dia deste exame, segundo seu pensamento. Os dias passam rapidamente e ele salta do elevador e alcança o corredor do edifício, vendo uma enorme porta de vidro nos fundos com o nome do laboratório.
Uma senhorita muito simpática o atende com um sorriso de um brinco ao outro nas orelhas.
Após pegar a requisição, volta com um tubo de vidro na mão e uma revista playboy na outra.
“Aqui Seu Otávio, é tudo o que o senhor precisa! Pode ficar a vontade!” “Mas minha filha esta revista aí eu não leio não! Deus me livra destas mulheres peladas!”
“Mas Seu Otávio, não temos outro jeito! Todos que vem aqui procedem desta forma!”
“Mas minha prezada, esta revista aí não, não quero! Tem alguma outra revista que trate de outros assuntos diversos?”
“Tenho uma aqui que fala de política, mas se der para o senhor, aí que o exame não vai ser feito nem na semana que vem!”
“Prefiro uma revista assim, que esta que a senhorita está me dando!”
“Seu Otávio, toma a revista e esta ampola de vidro, o banheiro fica ali, está vendo?”
“Vendo eu estou sim, quem não sabe onde fica um banheiro! WC de Wanderley Cardoso e sempre uma portinha esquisita em um canto!”
“Pois bem, vai lá com esta revista e este vidro, por favor, Seu Otávio, o telefone está tocando e tenho muita papelada para cuidar!”
“E o exame minha santa, cadê o médico para me fazer o exame?”
“Seu Otávio, aqui não tem médico não! É só o senhor resolver isto com esta revista e o tubo, a gente envia para a nossa Central e o resultado vem daqui a uma semana!” 
“Não, não quero esta indecência aqui não! Tem ou não tem outra coisa para mim?”
“Seu Otávio, já que não tem ninguém aqui, são quase seis da tarde, estou doida para ir para casa, não tem médico igual já lhe disse, o senhor insiste que com a revista não irá fazer nada, feche esta porta aí, venha cá prá dentro que vou resolver seu problema com maestria. Só vou lhe fazer um pedido: não vai querer voltar aqui toda semana, vai ser só desta vez, vem seu Otávio!”
Afinal de contas Seu Otávio ostentava este nome desde criança, mas não era seu otário! E a moça era linda. Linda, linda Amanda.

Calma Teseu!

"Espera um pouco, deixe eu abaixar mais! Mais um pouquinho!" "O volume está enormeeeeeeee!!!!!!!! Tá bom, nesta posição aí, tá bom. Deixa eu esticar, aguenta aí, o bom é quando ele ficar bem esticadinho!" "Parece que agora ficou na altura certa, vai, vai, vai, isto, vai mais alto um pouquinho só, espera, veja se fica assim porque está ficando bom demais, está ficando no ponto zero, fora de série, ótimo, excelente, maravilhoso! Uuuuuuuuuuuuiiiiiiiii!!!!!!!! Ooooopppaaaaaaaaaa!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!"
"Já que ele esticou, agora você podia apertar um pouco!" "Pode segurar a ponta com a boca, mas não por muito tempo, pois tem que ver o meu lado! Mas não aperte imediatamente com muita força, vá com jeito! Tudo é uma questão da forma como você faz! Você é muito boa nisto, pois é calma e não tem pressa! Vai apertando de forma que fica no ponto exato. Aperta mais um pouquinho para ajustar lá no fundo! Uuuuuuiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!"
"OK, você é quem direciona. Aperto primeiro mexendo um lado, depois aperto um pouco mais mexendo para o lado direito. No final dou o mesmo tipo de aperto nos dois lados! Avolumou demaissssssss!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Para ficar melhor, você devia suspender um pouco mais. Assim, mais um pouquinho. Também não precisa de ficar nas pontas dos pés! Aí será um exagero e não vai dar para eu acertar! Se ficar com as mãos assim vai chegar no teto e não vai ser legal! Abaixa, abaixa, abaixaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!!!!!!"
"Está bom, é você que está aí atrás que sabe a altura certa! Você tem que me falar.Istoooooooooooooooooooooo!!!!!!!!!!!!! Você conhece bem este jogo. Domina isto com muita habilidade. Quando chegar no fundo vai ficar melhor ainda! Podemos dizer que pelo anos que vivemos juntos, nós já temos experiência bastante para isto! Já fizemos assim várias vezes! Sabemos quando fazer a coisa certa, quando tudo está meio enxuto e meio molhadinho, quando está na hora de levantar mais alto ainda" "Vai, vai, vai, vai, vai, vai, vaaaaaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!!!!!Não é a primeira vez que fazemos isto, já somos macacos velhos! Lembra a primeira vez, como éramos desajeitados? Você gritava alto e chamava a atenção da vizinhança toda! Era marinheira de primeira viagem! Parecia que estava morrendo afogada! Fazíamos tudo a quatro mãos e até nossos pés se embolavam!" "Parece que com o tempo vai ficando melhor! Hoje, apesar do calor que está fazendo e neblinando bastante, nós nem estamos suando tanto! Tudo mais ou menos enxutinho e mais ou menos molhadinho! Tá inchandooooooooooooooooooo!!!!!!!!!"
"Espera, vê se vai devagar. Está doendo minha mão. É a posição que fiquei muito tempo. Deu câimbra. Espera um pouquinho, deixa passar a dor.... Agora vai apertando mais um pouco. Isto empurra mais para acertar por dentro! Agora melhorou bem com este balanço que você deu! Nooooossssaaaaaaa! Parece que está bem ajustado! Sinto um prazer redobrado ao ver que está dando tudo certo!"
"Eu também estou satisfeito. Agora está totalmente esticado. Tenho certeza que vai aguentar muito tempo! Pronto chegamos ao fim. Conseguimos amarrar o bagageiro. Só nos resta entrar no carro e botar o pé na estrada!"

O circo da loucura

Os caminhões do circo ao longo da estrada empoeirada formavam um comboio gigantesco. Atravessavam cidades interioranas sacudindo em suas boleias os sonos mal dormidos de suas dançarinas. Não vamos aqui imaginar o que os animais viam por dentro de suas grades, ao passar suas retinas pelas cerrações baixas das serras pontiadas de estrelas sorridentes. Nem nos cabe medir o salto sobrenatural dos anões em seus cochilos de duas em duas horas.
O que nos trouxe a este fato foi o amor surgido entre dois artistas que se encontraram numa campanha e nunca mais se desgrudaram. Um sentimento surgido das cinzas de ambos, misturando o ôntico e o caos e se há o provérbio de que dois narcisistas não se casam, parece que neste caso, rompeu-se este contrato psíquico.
Podemos afirmar, ou quem sabe perscultar, se um indivíduo que leva ao máximo do perfeccionismo a sua profissão, seja um narciso enlouquecido por si mesmo. Caso o mundo se despedace, que não se desmorone o espelho e que não desvaneçam as ninfas refletidas em seu ego.
Rosalvo, um mágico de primeira linha, acima de qualquer suspeita, pois tirava pombos da manga do paletó, sendo que nenhum destes pássaros fora visto antes ou depois nas cercanias do espetáculo.
Além daqueles que sopram a tocha e engolem fogo, sabe-se que numa noite de tempestade para evitar a destruição do acampamento, tragou duas dúzias de raios de uma tempestade aterrisadora.
Numa noite, enfurecido com uma criança que aos berros roubava-lhe a atenção do espetáculo, virou o circo pelo avesso e quando todos num relance olharam para baixo e para os lados, estavam sentados no teto do circo, que naquele momento se transformara numa grande bacia de lona. 
Odete, uma contorcionista das mais hábeis já retorcidas, comenta-se que para distrair-se, após o cansaço de embebedar plateias lotadas, andava por entre os pingos de chuvas torrenciais sem molhar-se por uma gota.
Apaixonaram-se não à primeira vista, porque o mágico para impressioná-la despareceu como por encanto e na segunda vista, ela confundiu-se no meio de uns rolos de cordas, de forma que ele não a encontrou em lugar algum.
A paixão virou possessão por parte do mágico e na vida circense casa-se passando de um camarim para outro. Não dormiam juntos e se amavam separadamente como o badalo se realiza ao bater no bronze do sino.
Terminava o espetáculo, Rosalvo trancava-a numa grande caixa de madeira, de dar água na boca a qualquer sarcófago faraônico. Trancava-o e passava-lhe a chave. A caixa muito bem feita por um carpinteiro de primeira mão, era toda de braúna e a fechadura de cobre martelado.
Desta forma vivia aquela donzela que iniciara sua vida fugindo na garupa do cavalo de um cigano e que de tanto se virar para sobreviver, tornou-se mais maleavel que cambraia em babado de aposento real.
Da caixa para o palco e deste para a caixa. Rosalvo sobrepunha-lhe o olhar e ela silenciosamente se dirigia à sua prisão ou quem sabe ao único espaço onde poderia se espichar e rolar ao som de somente um olhar.
Foi numa noite de Natal, sem mangedoura, sem maria com tez italiana cuidando de um bebê gorduchinho, ao som estridente de foguetes das festas familiares que Odete acordou de seu sono hipnótico. 
Enquanto Rosalvo dormia no ponto, ela contorceu-se ao máximo que pode e atravessando o buraco da fechadura, acompanhou um raio tênue de luz pelo chão e confundindo-se com os meio fios da cidade, buscou asilo na eterna escuridão.
O mágico ao abrir a caixa no dia seguinte, ao vê-la vazia, enlouqueceu de tal forma esdrúxula, findando seus dias fazendo caretas para os passarinhos que não sobrevoavam por sobre o céu do hospício.

O dia em que o bicho pegou

Alô, alô o bicho entrou aqui dentro de casa e agora o que eu faço? Para mim ele entrou no lugar errado! Estou com medo dele querer me chupar! Ele está onde realmente minha senhora? Precisamente agora eu não sei, meu senhor, mas acredito que está no quarto! Veja como ele está, para que posso orientá-la! Espere um pouco, estou indo...Não se encontra mais aqui...espera, ele passou muito rápido e foi para a sala! Está bem, minha senhora, isto demonstra que não é tão perigoso assim como imagina! IIIIhhhh!!!!!! Ele está comendo uma maçã em cima do fruteiro! Pois é minha senhora, não apresenta tanto perigo!!! Mas eu tenho medo dele me chupar! Ele olha para mim com um olhar esquisito demais! Ele mexe com a testa e se balança como quisesse bailar! Espera aí, parece que ele vem andando em minha direção!
Mas minha filha, se ele está com fome é óbvio que deseja privacidade, é uma necessidade animal, coisa de bilhões de anos durante o processo de evolução do ser!
Mas se ele me chupar não pode ser perigoso? Não, minha filha, ele não vai fazer isto! Ele tem algum desequilíbrio mental! Ele possui alguma tornozoleira no pé?
Não meu senhor ele não tem esta identificação não! É muito peludo na canela magra! Claro minha senhora, ele está passando necessidade! Ele se locomove com segurança?
Não meu senhor, ele é muito desequilibrado! Ele vai de um cômodo para outro de forma muito irregular fazendo zigue-zague! O senhor tem que ver como ele entrou no banheiro, quase bateu na porta semi-aberta!
Não entra lá não minha senhora, onde ele está! O lugar é muito apertado e a senhora está nervosa e com medo. Não dá esta chance para ele, estamos vendo aqui como vamos socorrê-la! Enquanto isto a senhora vai entretendo ele!
Eu quase bati nele meu senhor, cheguei a pegar a vassoura, mas pensei duas vezes e liguei para vocês! Hoje em dia tudo é considerado crime, mas se fosse antigamente eu teria matado ele!
Não minha senhora, não pode fazer uma coisa destas, nem pensar em matá-lo! Não pode inclusive machucá-lo! Olhe as leis vigentes do País. Primeiramente é feita a denúncia, depois agimos todos dentro da lei, nunca fora delas, não podemos pisar fora da constituição!
Ele saiu meu senhor, saiu de lado todo encabulado e desgovernado e foi para a cozinha em direção da pia! Vou vigiando ele, mas não largo a vassoura não, se ele partir para cima de mim, vou me defender com todas as forças que tenho. Não vou permitir que ele tente me chupar de jeito nenhum!
Compreendo minha senhora a sua angústia e preocupação, mas fique de olho e passe logo seu endereço para irmos até aí! Ele é como mesmo?
Meu senhor ele é horrível, está todo molhado, acho que foi no banheiro?
Todo molhado minha senhora? Sim meu caro da cabeça aos pés! Então ele é doidão mesmo minha filha! Mas não vai lhe fazer mal alguma! Já estamos no carro! 
Aguardo meu senhor! Ôba, enfim chegaram! Falou minha senhora, cadê o camarada, o invasor, o tarado?
Está ali meu senhor naquele canto! OOOOHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!! Mas é um morcego e não é um homem não, um louco não, um tarado não?
Mas os senhores não são do Órgão de Proteção da Mulher? Sim, minha senhora nós somos, mas contra atentados, violências, perturbações de maridos, parceiros ou outros incidentes contra a mulher! Neste caso a senhora deve ligar para o IBAMA!

Poema das mãos

Tem mãos que vão bem ao fundo, enquanto outras buscam outros vãos!
Mãos nunca faltam no mundo. O mundo está repleto de mãos!
Tem mãos que se dão dia a dia a traçar mil caminhos. 
Tem mãos que falam e bailam a dança da alegria! 
Tem mãos que bordam com ternura os contornos dos carinhos, enquanto outras escorregam por corrimões de marfim.
Tem mãos que são como corações e tudo que tocam se transforma em um jardim!
Tem as mãos das bençãos que oferecem o pão sagrado e o vinho santo!
Mas tem as mãos da desavença que levam tantas almas ao pranto!
Tem mãos que são sempre a favor, enquanto outras por aí vão a andar na contramão!
Tem mãos de ajuda e do amor, assim como tem aquelas da desunião.
Tem mãos que são mãos do destino e aparecem tão repentinamente como uma única mão de pintura.
Tem mãos que anunciam como sino e oscilam entre a graça e a amargura, pelo menos não são mão única.
Tem as mãos de via dupla, olhando de cima se parecem com uma túnica!
Tem também as mãos da minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa!

São as mãos da mais pleonástica repetição!
Tem mãos que são mãos do tempo e semeiam estrelas pelo vento! 

São mãos da mais elástica condição!
Tem mãos que não encontram sequer o tempo de estender seu gesto de perdão! 

Não sabem a falta que fazem ao mundo, mesmo que o mundo esteja repleto de mãos!

O casal da sala monolítica

Entre casais já ouvi dizer de vários pactos de amor infindáveis, alguns bem relatados em contos pitorescos, outros antigos e medievais de donzelas raptadas no bom aceite dos amantes e levadas a praias distantes para uma vida digna de um menestrel; alguns pactos realmente nos deixam arrepiados dos pés à cabeça, da infância à velhice e se fossem propagados pelos quatro pontos cardiais do planeta criariam um pane universal, um alvoroço que levantaria revoada de pássaros das manhãs às tardes inteiras e por noites consecutivas até a chegada inesperada dos tão propagados cavaleiros do apocalipse.
Ah! Sim, por citar neste momento estes enigmáticos seres que segundo uns surgirão da última noite dos tempos e segundo outros já varrem as avenidas das grandes cidades com suas motos impetuosas, sinal de um tempo insuportável contra si mesmo, onde as horas são pontuadas pela ansiedade da busca incessante ao prazer, à volúpia, à surpresa imediata, cada vez mais renovada em sua imediatez, busca incessante, inescrupulosa, de onde surgiu de seu ponto de partida um casal que se apaixonou profundamente e deslizavam suas motos em altíssima velocidade com as mãos dadas, tornando o risco de acidente muito mais próximo do que se pode imaginar.
Não, esta espécie de fim trágico não é do que se trata aqui, mas é de se esperar uma tragédia bem superior a esta imaginada, uma situação inusitada, sem a mínima condição de reversibilidade, sem volta, sem troco, sem possibilidade alguma de recuperação pela destruição interna causada naquela pobre senhorita que até então não experimentara o amor em nível tão profundo; basta pesarmos a decisão dos dois de não mais arriscarem suas vidas pelas madrugadas inteiras naquelas máquinas voadoras, pois amar era mais importante e arriscado do que aquela correria maluca onde muitos perderam precocemente suas vidas, então influenciados por um guru indiano, entraram na onda da meditação e aceitaram o convite lenoniano-iokiano para curtir a paz e sua serenidade complacente como uma corda de violino.
Violinos têm cordas frágeis e todos sabemos disto, mas vamos continuar com este interessante caso cujo fim nenhum de vocês poderia imaginar. Os dois decidiram experimentar o sabor de uma distância a meio palmo, pois uma coisa é mais do que certa, quem viveu como eles viveram o desafio daquelas corridas perigosíssimas, não suportaria ficar por muito tempo naquela situação lânguida de mantras intermináveis pronunciados sob a cerração baixa de incensos dourados e luminárias pequeninas da cor violeta ou anil; de sorte que decidiram morar em apartamentos separados e que estivessem unidos por uma sala de bate papo da internet, desde que estes recintos estivessem bem decorados à moda oriental com suas luminárias foscas e suas aparências de antigas praças de cidades adormecidas.
Com a passagem dos meses uma grande mudança sucedeu nestes estranhos seres ao se aprofundar cada vez mais na mística esotérica do clima daquela espiritualidade, tornaram-se grandes ascetas compenetrados em intrínsecos modelos de entoações de mantras, de prolongadas meditações e experiências complicadas com asanas das mais imagináveis possíveis que se expunham diariamente em suas janelas de bate papo diante de suas estranhas salas providenciadas pela complexidade da tecnologia avançada e de ponta.
Há quem diga que após o cume dos montes, o ápice de suas extremidades, resta somente o céu e este não tem limites, pois bem, quanto mais meditavam, também se distanciavam um do outro, pois é de praxe afirmar, que na base de todo o comportamento humano, principalmente este correlato ao casal em sua busca desesperada em início pelas corridas impetuosas, logo transformadas em um fanatismo espiritual, sim, na base deste comportamento há um sintoma bem alojado e escondido no inconsciente, quase sempre advindo de uma infância sob a égide da repressão ou da cegueira religiosa familiar proveniente ao proselitismo acentuado e quando isto não recebe um tratamento adequado, vemos na existência deste ser uma variância de atitudes desesperadas e volumosas sem dar fim.
Desta forma Eliana, nome inclusive muito belo, decidiu provocar seu amante, providenciando outro amante catado no varejo das ruas; assim agarradinha com ele apareceu de repente na sala de bate papo diante do seu primeiro amado para experimentar mais esta nova sensação, sendo que era uma vítima eterna deste tipo de procedimento, com certeza encontraria desta vez mais uma novidade visto não ser a última, conforme bem explicado.
Mas o seu primeiro amante desta vez também não estava, pois fora em busca de uma viagem sem fim pelos oceanos e deixara apenas a sala de bate papo bem arrumadinha com suas luminárias foscas, seu incenso, seus longos mantras entoando como shofares desmedidos; de tal forma que ela ao se deparar com aquela cena viu-se obrigada a engolir o espanto que não causara no outro; custa-me dizer-lhes prezados amigos e amigas que a coisa não parou por aí, pois de agora em diante ela encontra-se totalmente perdida, pois todos sabemos que não se deve tirar do cego o seu cajado ou seu cão e aquelas luzes foscas, aquele incenso, aquele mantra, agora totalmente acoplados à sua imagem colada a outro amante, provocativa, sensual, não lhe traria mais a paz que conquistara ultimamente nos seus momentos mais críticos e como ficaria agora diante daquela sala mística com aquela lâmpada violeta e anil ou diante de todas as salas que lembrassem a sua impensada atitude? Qual desenfreada busca no direito do seu pano de vida cobriria o caos emergido no avesso do seu pano da vida? Que outras luzes? Outros incensos? Outros mantras? E como de agora em diante por impensada conduta estar diante de luzes místicas, incensos, meditações e mantras esotéricos?

O voo do unicórnio

 Neste estranho episódio, cujo epílogo tem fenomênico caráter surrealista e inesperado, é notório revelar antes como prólogo a força exercida sobre um ser através de um pensamento fixo, destinando-o a uma mudança de vida e de rota assinalada, além de um giro completo sobre todos os seus planos traçados. O galo ou lombinho de sua testa, dedicando-lhe a alcunha de Unicórnio não diminuiu o interesse daquele inusitado senhor pela filosofia iniciado em sua plena juventude, ao olhar o céu forrado de estrelas em sua cidadezinha natal e indagar-se como seria o universo além delas; tal pensamento foi-se ampliando de forma a perguntar e reperguntar mais além ainda, bem mais distante possível quando ponderou não haver limites a ele mesmo, nem ao seu pensar, nem a nada e se não existissem demarcações definidas como se procederia daí em diante seu raciocínio levando em conta não ser possível imaginar algo sem fim ou algo com fim em termos de universo, pois o próprio fim seria o início de outro universo e assim... Graças a um tropeção em uma pedra em seu caminho custando-lhe um rombo no rosto viu-se interrompido aos seus miraculosos pensares. Mas se havia esta pedra no meio do seu caminho, diferentemente de Drummond ela não levou à poesia e sim à filosofia, embora a partir de sua própria parentela tenha sido enviado às profundezas do inferno e tomado alguns pontapés no cós da calça.
Dentro da universidade além desta questão das origens das origens, também sucederam outras como de onde vim e para onde vou. Pensando ter vindo mais recentemente em comparação ao começo de tudo, deveria ter vindo mesmo a partir do big bang ou grande explosão; conduzindo-o também a uma incognoscibilidade fantástica acerca de si mesmo, pois se foi através da grande explosão, com certeza estaria dentro dela, ou seja, no seu potencial, e se fosse reduzindo todas as possibilidades aplausíveis de si mesmo, estaria junto ao início e necessitaria agora desta feita, justificar o início do início, pois nada poderia vir do nada, sendo por observação dentro da lei de causa e efeito, todas as coisas se originam de outras coisas sucessivamente. Da mesma forma encontrava-se preso em buscar o sentido de para onde vamos e se fosse este um local distinto de todos os locais possivelmente pensados onde estaria, se realmente estaria em alguma parte e se esta parte fosse separada de todas as outras já avaliadas, então haveria outros universos paralelos a este, não conhecidos ou pensados pela ciência, a não ser imaginados pelo viajar livre no reino da maionese. 
Ora, se o fundamento do filósofo é pensar na raiz da questão, ou seja reduzir ao máximo até chegar ao mais possível da cristalina consciência, comportando-se como a teoria atômica vinda de Demócrito, onde vamos até ao á-tomo, ou seja, ao indivisível, com um comportamento reflexivo, ou seja onde o pensamento se debruça sobre o próprio pensamento para julgar o que o pensamento pensa, dedicou-se nosso prezado filósofo a inquirir se houvesse ainda outra pergunta com as mesmas características dos primeiras, isto é, qual a origem do mundo, de onde viemos e para onde vamos, podendo levar ao pensador a uma nova indagação colocada a serviço da árdua procura filosófica.
Tantos anos em busca de tais conceitos infindáveis em si mesmo, sem parar de quando em vez em um barzinho para divertir-se com os amigos, sem arrumar uma namorada, sem pentear direito seus cabelos e cuidar bem de sua aparência, nosso dedicado filósofo encontrou finalmente uma pergunta do mesmo quilate das três primeiras, “Onde fica o lado de lá?”, e assim desesperadamente saiu a perguntar a todos por onde os encontrasse, “Onde fica o lado de lá?” e realmente pelo espanto, os olhos esbugalhados, a fisionomia perplexa de seus interlocutores, não era uma pergunta fácil de ser respondia e merecia com certeza um estudo profundo da mesma e deu-se entendido ter realmente descoberto uma nova indagação filosófica da qual se ocuparia a humanidade por milhares de anos com certeza.
Pensava consigo mesmo na profundidade de sua descoberta, pois o lado de cima era indubitável, está realmente sobre todos, não há quem duvide encontrar-se sobre a cabeça de todos os mortais e perguntar sobre ele seria uma idiotice das maiores apresentadas e não faria disto um sábio. O lado direito, por mais rodopiado alguém encontrasse, também seria demarcado com facilidade, assim como o lado esquerdo ou o lado de baixo, sob os pés de todo mundo, inclusive sob os dele, pois após o tal tropeção já relatado em sua mocidade, também passou a cuidar-se dedicadamente, com seu olhar preso ao chão herdando-lhe um torcicolo insuportável, porém menos arriscado.
Sentia-se assim diante de uma nova ironia socrática, mesmo preso naquele fedorento hospício, mas como filósofo de carteirinha, sabia como o sábio ateniense, a responsabilidade de assumir sua cicuta por mais intragável fosse; lugar aparentemente inóspito, mas de onde nasceram sólidas amizades e onde inclusive encontrou figuras consideráveis a concordar com ele e sua pergunta fantástica “Onde fica o lado de lá?”, estas alguns médicos outrora cuidadores de grandes imperadores da história da humanidade ou outras figuras proeminentes como Napoleão Bonaparte, Alexandre Magno, Sócrates, Platão e Aristóteles, este três viviam muados em um canto disputando por purrinha quem mataria a próxima mosca a entrar na cela.
Alegrias sucessivas foram acontecendo dia a dia a um filósofo, já considerado o maior filósofo de todos os tempos, pois estava sendo admirado por Júlio César, o grande imperador romano, pela linda Cleópatra acordando todos os dias às quatro da manhã e de sua cela cantava sem parar a conhecida música tico tico no fubá. Finalmente uma travada amizade com Zumbi dos Palmares foi o suficiente para tramar a grande fuga daquele recinto, pois com toda a certeza o lado de lá estava do lado de lá daquele hospício, uma vez que em uma noite de grande tempestade descobriram o local exato do lado de cá ao verem cair grande parte das paredes daquele fétido lugar e fugindo guiados por Zumbi dos Palmares em direção ao grande morro de sua origem, onde havia felicidade e liberdade por toda a parte. Por onde Michel Foucault se passasse não teria escrito seus famosos livros, A História da Loucura, O Nascimento da Clínica e As Palavras e as Coisas, pois no meio daquela gente simples e humilde havia liberdade bastante e suficiente, para ser como se fosse, vivesse como se quisesse e no esplendor da noite dançar e cantar sua vida em samba.

O tatu da sorte

Pois é verdade sim minha gente, o Seu Bastião achou realmente um punhado de pedras preciosas arriscando um meio garimpo no seu riacho donde apenas pulavam alguns lambaris, traíras, bagres e cascudos imprudentes; se pescá-los foi atividade costumeira de suas enes gerações anteriores, ele foi buscar algo mais precioso; bom, os acontecimentos sucedidos logo após deixarão todos vocês bem impressionados demonstrando ser a vida uma caixa de pandora e ninguém pode acertar arriscando palpites, principalmente pelo seu caso amoroso, este será também esmiuçado dentre pouco.
Vocês bem sabem das verdades dos segredos, aqueles contados na orelha da mulher de forma bem baixinho tim tim por tim tim, jurando de dedos cruzados não serem revelados a ninguém; mas sogra não pode ser considerada ninguém em um mundo mitológico interiorano, assim como toda a sua família ou aqueles em torno dela, alastrando o caso tipo trepadeira de muro espalhada abrangendo um universo múltiplo e diferenciado de seres.
Pois bem meus prezados, foi justamente assim, de pé de orelha a pé de orelha o alastramento total do caso do Bastião ao encontrar uma considerável fortuna, dando a ser conhecida de um indivíduo demoníaco, um anjo mal para não falar o nome real da criatura bestálica, conhecendo esmiuçadamente o fato e outro da traição, ou melhor distraição, pois traindo ou distraindo não sabemos até onde podemos julgar duas criaturas, mas bem embasado nestes fatos foi de sua decisão bater à porta do até este momento afortunado para fazer-lhe uma barganha, naquela terra de sabedoria cigana.
Esta maléfica personalidade dos escombros do mundo chegou bem vestido, posto estava com seus alguns dentes de ouro, bem forrado chapéu prado, grandes botas, um cavalo tão arreado de trazer inveja a São Jorge, com uma definida proposta, “Olhe Tião, você pode escapar das minhas garras no inferno!”, sob dois esbugalhados olhos o sortudo proclama, “Como posso ir para o inferno, uma vez de ti não tenho dúvida alguma de sua pessoa?”; pois era disto mesmo, desta certeza advinda, aquela cruel criatura necessitava para dar seu bote final como jararaca enrolada em si mesma ocultando a extensão do seu bote, “Você vai morrer e ir para minhas garras com certeza. Você é amante da mulher do compadre e só tem uma forma de você se livrar de mim. Você me entrega o embrulho das pedras preciosas achadas e vamos depositar tudo no banco obscuro do inferno!”
“Mas meu prezado, (neste momento fulminante melhor tratar logo de fundar um pacto de amizade, pois o bicho tava pegando), onde fica este curioso banco, sendo do meu conhecer outros estabelecimentos bancários!”
“Fica na boca do formigueiro, Tião! Nós vamos depositar o lenço amarrado com as pedras preciosas na boca do formigueiro! Ou se preferir, morrerá e queimará no inferno pelo resto de sua vida!”
Tendo ou não tendo sobra de vida no mundo infernal, acometido por todos os sintomas internos das maledicências do Padre Genival, Tião propôs logo partir para o rumo da empreitada.
A duas léguas dali chegaram os dois, um no seu belo e reluzente alazão e o outro em sua égua cambaleante e velha, mas chegaram a ponto de ver o sol estalar sobre a boca escancarada do buraco de formiga, por onde o ser de nome indizível depositou no fundo o lenço milionário e salvador de uma alma ofegante já em sua consciência com os pés chamuscados à beira da porta do inferno; enquanto aquele ser horrível sentiu suas mãos arranharem em uns dentes crendo por sua experiência ser realmente a arcada da boca de um tatu morto de fome ou velhice.
Como de trato marcado e com o diabo o troço deve ser cumprido em retidão, acompanhou Tião até seu casebre pronunciando várias vezes ter-se livrado para a eternidade das caloríficas chamas infernais para onde estava prestes a ser conduzido.
Como todo velhaco voltou a mil, para sacar do lugar sua fortuna quase enterrada, ou melhor, totalmente enterrada, pois ao enfiar a mão no buraco não havia sinal de arcada dentária com o embrulho dentro e visto sua experiência matuta notou um rastro de retorno às profundezas do buraco, denotando com absoluta certeza o recuo infinito de um tatu com sua merenda na boca.
O mais depressa possível tratou de arrumar uma pedra de bom tamanho para cobrir a entrada do buraco e vistoriar o locar para ver se havia mais buracos por onde o engole tesouros poderia sair, coisa de levar a tarde e a noite inteira, passando inclusive em lamaçal e de nada encontrando deu-se por certo ser a única porta de entrada agora do seu próprio inferno, pela fortuna escapada na boca de um tatu.
Precisava urgentemente de um ajudante e de ferramentas como enxadões, pás e picaretas para cavar profundamente até onde pudesse encontrar o carcaçudo ladrão de pedras preciosas; mesmo todo enlameado como um porco não foi difícil arrumar um daqueles braçais acostumados aos tostões das épocas de colheitas, ainda mais diante da promessa de ganhar o bastante a comprar um burro e uma carroça para fazer fretes e ganhar bastante dinheiro.
Começaram a cavar com o sol levantando e arrancando reflexos das ferramentas no ar, a terra era fofa e fácil de remover e o buraco ia se aprofundando cada vez mais de não dar fundo e afunilar em um labirinto infinito por onde se introduziram cavando desesperadamente um pela riqueza fácil e imediata e o outro pela possibilidade de iniciar um bom negócio naquele fim de mundo recheado de escravidão por toda parte.
Quanto mais cavavam, mais o círculo do buraco de se apresentava em frente e já passava bem mais do meio da tarde, acabada a comida de pão com carne de sol e duas moringuinhas de água, quando aconteceu um estrondo enorme caindo toda a terra, todo o barranco, tudo sobre eles, soterrando-os para sempre naquele distante rincão sem nenhuma testemunha a não ser o vento outonil e o sol se pondo sem ruído.
Desta forma três acontecimentos interessantes aconteceram naquela região, sendo a primeira delas é de que nem sempre só quem nasce para tatu morre cavando, para quem nasce para porco também morre cavando, assim como quem com porco anda em vez de comer farelo vai comer terra derramada e sendo mais cuidadoso podemos afirmar ter Tião perdido uma fortuna e ganhado realmente a vida, pois o compadre não sabia certamente quem era o traçador de sua mulher, mas afirmou matar os dois no dia da fuga, coisa muito comum por aquele lugar onde havia ladrão de mulher. Tião desfez a mala e agradeceu a Deus, pois sem fortuna aquela mulher não o acompanharia a tão arriscada aventura.

Amor eterno

Ninguém descola
nossa sinapse,
ninguém desliga
nossa cola,
ninguém devora
nosso tempo,
ninguém desfaz
nossa interface.
Somos vela
do mesmo vento,
somos proa e
somos mastro.
Não tem escola,
não há escala,
que meça esta
medida que sabe
porque na vida
aqui estamos.
Que somos sapato
da mesma sola.
Que somos dança
da mesma sala.
Que somos vinho
da mesma taça.
Que somos teto
do mesmo piso.
Que somos corda
do mesmo banjo.
Que somos afeto
do mesmo sorriso.
Que somos laço
da mesma fita.
Que somos flores
do mesmo arranjo.
Que somos traço
do mesmo grafite.
Que somos carinho
e cada um
se abraça na
ausência do
outro,
sem que isto
o faça estar sozinho.

O destino da corte



A pintura pendurada na parede do salão congelava uma época amarelada em livros antigos, empoeirados em estantes de peroba nos meados do século XVIII. Um dos nobres segura com a mão direita o cabo de sua espada, um gesto sutil que ninguém esperava, a proteger o chakra esplênico.
Duas moças com seus longos vestidos de seda indagavam com o olhar onde estavam seus amores escondidos nas perpétuas sombras dos bastidores do palácio.
Quem olha a tênue figura da madame central percebe sem esforço algum sua peruca superposta como um arranjo de flores mortas e sua pálida fisionomia cansada de viver um papel e manter uma postura palaciana em nome de um status quo.
Apenas duas crianças estão à vontade sentadas no chão. São obedientes à custa de alguns tapões e puxões de orelhas, que o pintor não deixou escapar sobressaindo a um raio de luz por detrás da cortina. 
Este facho de luminosidade comporta-se como a extensão do caprichoso pincel, única pintura escondida no avesso da tela, trazendo o perfume das terras, do renascer das frutas e do encantamento dos pássaros que sempre estiveram ali, sem nunca terem sido percebidos.
Há uma porta nos fundos que foi a penúltima a ser fechada, conforme seus costumes de enterrar seus mortos nos fundos do castelo, onde existia uma montanha condecorada de cruzes.
Ali sim, os que se destroçavam, conspiravam e se traíam poderiam estar lado a lado, com as pedras esculpidas sobre seus túmulos, contando suas histórias em quatro linhas náufragas entre duas datas fatais.
Os ratos roem os restos que sobraram sem nenhuma piedade de todos os outonos embutidos nos móveis do salão.
As baratas rodopiam na sala de festas, bem apresentadas com suas asas envernizadas dançam a última valsa da chegada do fim.
De um solene chapéu de gala sobrou a linha do horizonte de suas abas. De uma colcha de cetim, via láctea de pérolas, derramaram-se as rendas pelos cantos à procura de outras prendas.
A porta de entrada faz uma longa viagem de ida e volta e como uma carpideira chora a chama da ausência que arde no silêncio das horas.
A solidão vaga por todos os cantos arrastando suas vestes sombrias com os sapatos da última camareira.Somente o vento, do qual todos reclamavam em suas festas noturnas, este que sanfona a porta da entrada, permanece o mesmo! O vento, aquele não presente na tela, impossível de ser pintado, que se expressa somente através dos objetos, sejam eles folhas derramadas no caos, continua ali, permanente como um intruso impedido de entrar, mas que espiava tudo por dentro pelas frestas das venezianas e sabia do momento certo de alçar voo para a sua liberdade. Os outros personagens estão presos na montanha assombrada.

Um brinde aos vencedores

Assim como no início / O teclado estava ali, sempre imóvel, frio, estampando os caracteres à espera de contos, como as estrelas aguardam os dedos infantis que as contem. Prolongavam-se os dias naquela sala, com uma estante num canto. Proust paralisado "Em busca do tempo perdido", resguarda suas memórias.
A janela aberta à direita repassa das manhãs às tardes os mesmos dias com sua manivela lenta das horas cotidianas. Pipas de diferentes cores intercalam nuvens, estas de diversos tamanhos se desfazem ao vento, reinventando formas, pois talvez haja olhos pesquisadores que as busquem. Estamos ainda no início de uma grande transformação.
Duas mãos se precipitam por trás da tela e se lançam sobre o teclado iniciando uma digitação inesperada, quebrando a frigidez do silêncio e a repetição do óbvio. Da mente surgiria um conto inédito, inesperado, uma estória para além de absurda, principalmente diante da tela não plana, mas esférica e imensa. As paredes se abrem como portais para outras dimensões.
O bosque mais além aguarda quieto os passos que o procuram. Um longo quintal coberto de folhas e pétalas responde à cadência do andar, com uma sinfonia clássica, como se cada flor fosse uma nota musical.
As árvores guardam seus ninhos com um cuidado maternal e abrem suas copas para colher o orvalho da madrugada e ao redor de todo o lugar, sente-se o cheirinho fresco de um lago encantador.
A campina que se espalha aos confins do horizonte exala um perfume de jasmim. A cidade vai-se diluindo. Os prédios vão se encolhendo e desaparecendo no solo. Todas as estruturas de cimento armado se dissolvem ao sabor do nada.
Tudo o que é feito de metal também desaparece. Pelas avenidas os carros se embrenham em trincheiras, sucedendo o mesmo em todas as ruas e pistas, como se uma enorme boca fosse engolindo a todos.
No lugar de todos estes artefatos humanos cresce a relva, sopra a brisa e dançam as borboletas.
Com as suas invenções desaparecem todos os homens. As florestas se estendem por toda a face da terra. As ondas dos mares desenham rendas nas areias no seu vai e vem. As montanhas espreitam de longe os vales verdejantes, enquanto suas torres de transmissão e suas antenas antes bem alojadas vão se desfazendo todas como pó de aço.
No céu só reinam os astros, pois os satélites artificiais caem como cinzas sobre os oceanos.
Voltam as estações. Predomina a natureza.
Quem esperava que um dia as máquinas dominassem a humanidade errou por completo. Os robôs também desapareceram. As máquinas deram lugar à vida natural.
A terra tragou todas as construções humanas.
Os cientistas que retiraram a inteligência do silício, dos cristais, dos metais para fabricar um mundo tecnológico não perceberam a grande conspiração.
A natureza nunca trai a si mesma. Uma super mente digita o mundo no silêncio e seu funcionamento como no início é um verbo flutuante.

Hosana

Ah! Seu sorriso, seu sorriso Hosana! Depois que lhe vi no Instagram e no Face, penso em ti a cada dia de cada semana, e de tanto pensar e...